sábado, 15 de maio de 2010

A Memória de Amnésio

           Amnésio era homem de quarenta e três anos. Descendentes, não os possuía, e mulheres, era uma nova a cada fim de semana, cujos nomes fazia questão de esquecer. Vivia o hoje como se não houvesse ontem. Pouco se recordava da infância no interior de Minas ou da adolescência em Belo Horizonte e seus colegas de trabalho não conheciam nada do seu passado. O próprio Amnésio custava a lembrar-se da fisionomia dos pais, já mortos. Para todos ao seu redor ele era uma incógnita.
           O homem memorizava o estritamente necessário: seu nome e endereço. O resto tinha nos documentos ou no “HD” do laptop. Na repartição pública não suportava conversar com dona Mnemosine. A velha só falava dos “bons e velhos tempos”, quando a cidade era limpa, menos violenta. Amnésio mal escutava a senhora e reduzia cada vez mais suas lembranças, afirmando brasileiramente:
- Quem vive de passado é museu!
        Certo dia, farta da desconsideração e desuso por parte de seu dono, a Memória de Amnésio transformou-se de seletiva para exterminadora. Tudo o que o homem não se importava de lembrar ela simplesmente apagava de sua mente: acontecimentos históricos, imagens, cheiros, gestos, impressões, tristezas, pessoas, lugares. O passado virou passado. Nosso “memorando” ficou maravilhado! Mas não por muito tempo...
            Na manhã seguinte, ao entrar no banheiro para escovar os dentes, Amnésio notou que não conseguia ver seu rosto refletido no espelho. Esfregou os olhos e nada. Podia ver tudo, exceto sua face. Em outros espelhos o mesmo acontecia. O homem desesperou-se ao perceber que não recordava de sua fisionomia. A rancorosa e vingativa Memória de Amnésio não tivera misericórdia: não guardara sequer o seu nome. Procurou, desorientado, sua carteira de identidade, mas estava em branco. Nas poucas fotos que possuía, não havia nada além de sombras e borrões.
        Finalmente, encontrou na cabeceira da cama um endereço. Com dificuldade, pois não distinguia absolutamente nada na cidade, chegou à repartição. Ninguém ali o reconhecia, nem mesmo a velha Mnemosine. Era como se o homem nunca tivesse trabalhado naquele lugar nunca tivesse existido. A cruel Memória, ao exterminar toda a história de Amnésio, decretou sua morte para a sociedade. O que restou foi um fantasma, vagando num espaço sem identidade nem tempo.

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